quarta-feira, 27 de abril de 2016

Edward Feser - Deus Ex-Machina?

[...] o mecanicismo é um erro metafísico particularmente pernicioso. De fato, é do ponto de vista Aristotélico-Tomista o principal erro do pensamento moderno, do qual todas as outras patologias morais e filosóficas do mundo moderno derivam. Eu escrevi numa postagem passada de que é no mecanicismo que a tendência filosófica moderna ao reducionismo está enraizada. E eu argumento extensamente em "The Last Superstition" — especialmente no capítulo 5 — de que é também no mecanicismo que nós encontramos as raízes dos tais problemas filosóficos "tradicionais", como o problema da mente-corpo, o problema da identidade pessoal, o problema da indução, o problema de dar fundamento racional à moralidade, o problema do ceticismo epistemológico, e o problema do livre-arbítrio. (Pelo menos os três últimos problemas precedem a revolução mecanicista moderna, mas se tornaram particularmente intratáveis por ela.) A moralidade e até mesmo a ciência se tornaram ininteligíveis quando se tenta interpretá-las num contexto mecanicista. Como W.T. Stace escreveu uma vez, o abandono moderno de causas finais foi "a maior revolução na história humana, de longe superando em importância quaisquer revoluções políticas das quais o trovão reverberou pelo mundo", e em sua concepção do mundo natural como inerentemente "sem propósito, sem sentido, sem significado "prepara "a ruína de princípios morais e de todos os valores" ("Man Against Darkness", The Atlantic, (Setembro, 1948)). Stace — quem escrevia de uma perspectiva empirista ao invés de Aristotélico-Tomista — também reconheceu que essa revolução foi puramente filosófica, e não fundada em qualquer descoberta empírica ou científica. E como eu escrevi numa outra postagem passada, outros pensadores fora da órbita Aristotélico-Tomista (tais como Alfred North Whitehead e E. A. Burtt) também reconheceram os fundamentos filosóficos ao invés de científicos da revolução mecanicista, e notaram suas implicações filosoficamente problemáticas para a ciência em cujo nome os mecanicistas defenderam a sua revolução.

Mais para o ponto presente, contudo, é que o mecanicismo é simplesmente incompatível com o teísmo clássico — a concepção de Deus historicamente central tanto para a ortodoxia Cristã quanto para a teologia filosófica clássica, defendida por tais pensadores como Atanásio, Agostinho, Anselmo, Aquino, e (fora do contexto cristão) por Maimonides, Avicenna, e outros. No núcleo do teísmo clássico está a doutrina da simplicidade divina de acordo com que não há em Deus nenhuma composição, qualquer que seja. Ele não é "feito de" partes nem físicas nem metafísicas, da maneira que todo o resto das coisas que existem são — de forma e matéria, digamos, ou ato e potência, ou essência e existência. Em vez disso, Ele simplesmente é "puro ato" e existência subsistente. Ele não é "um ser" ao lado de outros seres, mas antes o próprio Ser. Também é central ao teísmo clássico a noção de que o mundo das coisas criadas, contingentes, não poderia continuar na existência mesmo por um instante caso Deus não o preservasse continuamente no ser. Essas doutrinas estão ligadas. É por causa de que tudo na ordem criada é composto que ela deve ser "mantida junta" no ser por algo fora dela; e é porque só Deus é simples e não-composto que só Ele pode ser aquilo que preserva tudo o mais no ser dessa maneira.

Agora, para o Aristotélico-Tomista, a distinção aristotélica entre ato e potência é crucial para entender a simplicidade divina, a conservação divina, e a conexão entre elas. A essência de uma coisa contingente (e assim a própria coisa contingente) é meramente potencial ou "em potência" até que aquela essência seja atualizada através do ser, combinada a um "ato de existência". A matéria é meramente potencial a menos que combinada e atualizada pela forma. Em geral, a potência não pode existir por conta própria, mas só quando é unida à atualidade. Mas só aquilo que é Puro Ato pode possivelmente por um fim em qualquer regressão de "atualizadores", precisamente porque é simples e não tem partes das quais a conjunção precisa ser atualizada. Assim o mundo de coisas compostas não poderia existir por nenhum instante a menos que aquilo que é puramente atual e absolutamente simples estivesse continuamente sustentando esse mundo.

Como eu escrevi anteriormente, a distinção de ato/potência e a noção de causalidade final estão intimamente relacionados: uma potência ou potencial é uma potência para algum ato ou atualidade, em direção a qual esse potencial aponta como um fim; e ter um fim é estar em potência em direção a algo. Não é acidental, então, que quando os modernos abandonaram a causalidade final pelo mecanicismo, a distinção de ato/potência foi abandonada também. E também não é acidental que o mundo tenha se tornado algo parecido a uma "máquina", não somente no sentido de um tipo de artefato remendado de partes sem tendência inerente para funcionar em direção a um fim comum , mas também no sentido de ser o tipo de coisa que pode, em princípio, continuar a existir mesmo na ausência do "maquinista". A doutrina da conservação divina deu lugar ao deísmo, e o deísmo deu lugar ao ateísmo.

Tenha em mente que para Aristóteles e a tradição Escolástica influenciada por ele, a distinção de ato/potência é crucial para evitar os extremos representados por Parmênides e Heráclito, em ambos os quais a ciência se torna impossível. Para Parmênides, a mudança é ilusão, e assim também o mundo de nossa experiência, onde qualquer ciência empírica precisaria basear suas descobertas. Para Heráclito, a permanência é a ilusão, e não há nada que possa unir a liberdade da experiência em um sistema ordenadamente científico. Aristóteles argumentou, contra Parmênides, que a mudança é possível porque entre o ser e o não-ser — as duas únicas categorias reconhecidas por Parmênides — existe a potência ou potencialidade. Mas (contra Heráclito) a permanência é também possível, porque dentro do fluxo da experiência enfatizada por Heráclito há formas imutáveis ou essências que a matéria deve assumir se é para ela ser atualizada de qualquer modo. É por causa dessas formas atualizantes serem universais, comuns à miríade de indivíduos que as instancia, e porque elas persistem mesmo se as coisas individuais irem e virem, que a ciência é possível. Porque são as formas imutáveis e universais, ou a natureza das coisas, que formam a matéria de discussão adequada da investigação científica.

Agora, os antigos atomistas procuraram evitar os extremos Parmenideanos e Heracliteanos de outra maneira. Para eles, o mundo da nossa experiência é de fato o fluxo que Heráclito disse que era, mas só porque subjacente a ele está o mundo dos elementos inobserváveis, imutáveis e indestrutíveis (e nesse sentido, "Parmenidiano") —os átomos, interagindo de acordo com padrões de causalidade eficiente e desprovidos de qualquer teleologia inerente ou causalidade final.  Mas não há nada além disso a ser dito na explicação dos próprios átomos. Limitados como são os vários átomos às suas formas particulares, tamanhos, posições no espaço, etc., eles não podem inteligivelmente ser tomados como puramente atuais, simples, ou de qualquer outra maneira comparável (e tão "auto-explicativos" como) ao Deus do teísmo clássico. Nem, desprovidos como são de causalidade final, eles necessarimente apontam além de si mesmos para qualquer coisa. Conformemente, eles constituem o conhecido "fato bruto". Ao invés de verdadeiramente evitar os extremos Parmenidianos e Heracliteanos, os atomistas essencialmente abraçaram ambos de uma vez: como Parmênides, eles sustentaram que o mundo da nossa experiência é ilusório; na realidade não há "nada além" dos atómos. E como Heráclito, eles tornam o mundo, em última análise, ininteligível.

Mas os atomistas foram os mecanicistas originais, e seus sucessores modernos simplesmente repetem seus erros. Como eu escrevi em várias postagens antigas e argumentei extensivamente em "The Last Superstition" e "Aquinas", rejeitar as causas imanentes formais e finais é tornar a causalidade eficiente ininteligível também. Porque se nada de sua natureza "aponta além de si" para qualquer outra coisa, então causas e efeitos se tornam "soltos e separados"; qualquer efeito ou nenhum pode, em princípio, seguir de qualquer causa. Isso não só pavimenta o caminho para os paradoxos de Hume, mas mina a possibilidade de mostrar como o próprio fato da causalidade eficiente como tal — quer dizer, de potência sendo atualizada — pressupõe uma Causa Não-Causada sustentadora e puramente atual. A conexão metafisicamente necessária entre o mundo e Deus está quebrada; em princípio o mundo pode existir e operar tal como acontece à parte de Deus.

Ainda existem, é claro, questões sobre como os elementos da máquina mundial (quer pensemos nesses elementos como átomos Democriteanos ou em termos mais contemporâneos) vêm a formar estruturas mais ou menos complexas. Mas o peso das probabilidades vis-à-vis, dessa ou daquela estrutura poder ter acontecido por processos naturais conhecidos não pode nunca te levar a uma polegada mais perto do Deus do teísmo clássico, porque aquele Deus já foi descartado no momento em que foi concedido que a máquina pode pelo menos em princípio ter existido sem Ele.

Isso ainda permanece mesmo se o mecanicismo for adotado "só para fins de argumentação". Explicar o Deus do teísmo clássico numa base mecanicista mesmo a fim de argumentação é como dizer "Vamos conceder, só para fins de argumentação, que quem quer que tenha matado Nicole Brown Simpson e Ron Goldman não poderia ter sido um homem. Agora, deixe-lhe mostrar porque é provável, dado aquela suposição, que O. J. Simpson foi o assassino..." O procedimento é absurdo, porque a concessão inicial já eliminou a conclusão desejada da corrida.

Mas não se poderia argumentar que os próprios elementos devem ter vindo de Deus? Sim, mas não de uma maneira "mecânica". Porque se é afirmado desses elementos algo como uma composição de ato/potência, daí de fato se chega a Deus, mas (uma vez que tal composição acarreta a causalidade final) só porque se abandonou implicitamente o mecanicismo. Mas se alguém insiste em negar dos elementos qualquer tipo de causalidade final imanente, daí esse alguém estará assim implicitamente negando deles qualquer tipo de potência que precisa ser atualizada por algo fora deles. E nesse caso, os elementos não serão necessariamente sustentados no ser por Deus. Assim, independente ao que se apela a fim de explicá-los, nunca poderia ser o Deus do teísmo clássico, mas somente um substituto idólatra. Similarmente, o Deus do teísmo clássico é o Ser em Si, e nada poderia existir — quer dizer, ter ser — mesmo por um instante, mesmo em princípio, sem participar no Ser em Si (seja a "participação" entendida em termos neo-platônicos ou nos termos aristotelianizados da Quarta Via de Aquino). "Pesar as probabilidades" dos elementos de um universo mecânico poder ter eles mesmos uma causa, é assim, implicitamente, descartar o Deus do teísmo clássico como a causa que se defende, uma vez que se uma coisa participa do Ser em Si, isso não pode ser inteligivelmente tomado como uma questão de probabilidade, não mais do que tomar um teorema geométrico que segue de certos axiomas como uma questão de probabilidade.

Como Kant famosamente sustentou, o argumento "físico-teológico" ou o argumento do "design" para a existência de Deus, realmente não te leva a Deus, mas somente para um grande, porém finito, arquiteto cósmico — algo como o Ser Supremo, personagem de Ralph Richardson de "Time Bandits", como eu apontei numa postagem anterior. O mesmo é verdadeiro de qualquer argumento que prossiga, como Paley e seus sucessores fizeram, retratando Deus como um remendador que monta um universo mecânico. E o ponto, como eu não posso repetir muitas vezes, não é que esses argumentos não te levam de maneira alguma ao Deus do teísmo clássico, mas que eles te levam positivamente para longe do Deus do teísmo clássico. Você pode tirar um Deus da máquina, mas nunca "o" Deus.