quarta-feira, 27 de abril de 2016

Edward Feser - Deus Ex-Machina?

[...] o mecanicismo é um erro metafísico particularmente pernicioso. De fato, é do ponto de vista Aristotélico-Tomista o principal erro do pensamento moderno, do qual todas as outras patologias morais e filosóficas do mundo moderno derivam. Eu escrevi numa postagem passada de que é no mecanicismo que a tendência filosófica moderna ao reducionismo está enraizada. E eu argumento extensamente em "The Last Superstition" — especialmente no capítulo 5 — de que é também no mecanicismo que nós encontramos as raízes dos tais problemas filosóficos "tradicionais", como o problema da mente-corpo, o problema da identidade pessoal, o problema da indução, o problema de dar fundamento racional à moralidade, o problema do ceticismo epistemológico, e o problema do livre-arbítrio. (Pelo menos os três últimos problemas precedem a revolução mecanicista moderna, mas se tornaram particularmente intratáveis por ela.) A moralidade e até mesmo a ciência se tornaram ininteligíveis quando se tenta interpretá-las num contexto mecanicista. Como W.T. Stace escreveu uma vez, o abandono moderno de causas finais foi "a maior revolução na história humana, de longe superando em importância quaisquer revoluções políticas das quais o trovão reverberou pelo mundo", e em sua concepção do mundo natural como inerentemente "sem propósito, sem sentido, sem significado "prepara "a ruína de princípios morais e de todos os valores" ("Man Against Darkness", The Atlantic, (Setembro, 1948)). Stace — quem escrevia de uma perspectiva empirista ao invés de Aristotélico-Tomista — também reconheceu que essa revolução foi puramente filosófica, e não fundada em qualquer descoberta empírica ou científica. E como eu escrevi numa outra postagem passada, outros pensadores fora da órbita Aristotélico-Tomista (tais como Alfred North Whitehead e E. A. Burtt) também reconheceram os fundamentos filosóficos ao invés de científicos da revolução mecanicista, e notaram suas implicações filosoficamente problemáticas para a ciência em cujo nome os mecanicistas defenderam a sua revolução.

Mais para o ponto presente, contudo, é que o mecanicismo é simplesmente incompatível com o teísmo clássico — a concepção de Deus historicamente central tanto para a ortodoxia Cristã quanto para a teologia filosófica clássica, defendida por tais pensadores como Atanásio, Agostinho, Anselmo, Aquino, e (fora do contexto cristão) por Maimonides, Avicenna, e outros. No núcleo do teísmo clássico está a doutrina da simplicidade divina de acordo com que não há em Deus nenhuma composição, qualquer que seja. Ele não é "feito de" partes nem físicas nem metafísicas, da maneira que todo o resto das coisas que existem são — de forma e matéria, digamos, ou ato e potência, ou essência e existência. Em vez disso, Ele simplesmente é "puro ato" e existência subsistente. Ele não é "um ser" ao lado de outros seres, mas antes o próprio Ser. Também é central ao teísmo clássico a noção de que o mundo das coisas criadas, contingentes, não poderia continuar na existência mesmo por um instante caso Deus não o preservasse continuamente no ser. Essas doutrinas estão ligadas. É por causa de que tudo na ordem criada é composto que ela deve ser "mantida junta" no ser por algo fora dela; e é porque só Deus é simples e não-composto que só Ele pode ser aquilo que preserva tudo o mais no ser dessa maneira.

Agora, para o Aristotélico-Tomista, a distinção aristotélica entre ato e potência é crucial para entender a simplicidade divina, a conservação divina, e a conexão entre elas. A essência de uma coisa contingente (e assim a própria coisa contingente) é meramente potencial ou "em potência" até que aquela essência seja atualizada através do ser, combinada a um "ato de existência". A matéria é meramente potencial a menos que combinada e atualizada pela forma. Em geral, a potência não pode existir por conta própria, mas só quando é unida à atualidade. Mas só aquilo que é Puro Ato pode possivelmente por um fim em qualquer regressão de "atualizadores", precisamente porque é simples e não tem partes das quais a conjunção precisa ser atualizada. Assim o mundo de coisas compostas não poderia existir por nenhum instante a menos que aquilo que é puramente atual e absolutamente simples estivesse continuamente sustentando esse mundo.

Como eu escrevi anteriormente, a distinção de ato/potência e a noção de causalidade final estão intimamente relacionados: uma potência ou potencial é uma potência para algum ato ou atualidade, em direção a qual esse potencial aponta como um fim; e ter um fim é estar em potência em direção a algo. Não é acidental, então, que quando os modernos abandonaram a causalidade final pelo mecanicismo, a distinção de ato/potência foi abandonada também. E também não é acidental que o mundo tenha se tornado algo parecido a uma "máquina", não somente no sentido de um tipo de artefato remendado de partes sem tendência inerente para funcionar em direção a um fim comum , mas também no sentido de ser o tipo de coisa que pode, em princípio, continuar a existir mesmo na ausência do "maquinista". A doutrina da conservação divina deu lugar ao deísmo, e o deísmo deu lugar ao ateísmo.

Tenha em mente que para Aristóteles e a tradição Escolástica influenciada por ele, a distinção de ato/potência é crucial para evitar os extremos representados por Parmênides e Heráclito, em ambos os quais a ciência se torna impossível. Para Parmênides, a mudança é ilusão, e assim também o mundo de nossa experiência, onde qualquer ciência empírica precisaria basear suas descobertas. Para Heráclito, a permanência é a ilusão, e não há nada que possa unir a liberdade da experiência em um sistema ordenadamente científico. Aristóteles argumentou, contra Parmênides, que a mudança é possível porque entre o ser e o não-ser — as duas únicas categorias reconhecidas por Parmênides — existe a potência ou potencialidade. Mas (contra Heráclito) a permanência é também possível, porque dentro do fluxo da experiência enfatizada por Heráclito há formas imutáveis ou essências que a matéria deve assumir se é para ela ser atualizada de qualquer modo. É por causa dessas formas atualizantes serem universais, comuns à miríade de indivíduos que as instancia, e porque elas persistem mesmo se as coisas individuais irem e virem, que a ciência é possível. Porque são as formas imutáveis e universais, ou a natureza das coisas, que formam a matéria de discussão adequada da investigação científica.

Agora, os antigos atomistas procuraram evitar os extremos Parmenideanos e Heracliteanos de outra maneira. Para eles, o mundo da nossa experiência é de fato o fluxo que Heráclito disse que era, mas só porque subjacente a ele está o mundo dos elementos inobserváveis, imutáveis e indestrutíveis (e nesse sentido, "Parmenidiano") —os átomos, interagindo de acordo com padrões de causalidade eficiente e desprovidos de qualquer teleologia inerente ou causalidade final.  Mas não há nada além disso a ser dito na explicação dos próprios átomos. Limitados como são os vários átomos às suas formas particulares, tamanhos, posições no espaço, etc., eles não podem inteligivelmente ser tomados como puramente atuais, simples, ou de qualquer outra maneira comparável (e tão "auto-explicativos" como) ao Deus do teísmo clássico. Nem, desprovidos como são de causalidade final, eles necessarimente apontam além de si mesmos para qualquer coisa. Conformemente, eles constituem o conhecido "fato bruto". Ao invés de verdadeiramente evitar os extremos Parmenidianos e Heracliteanos, os atomistas essencialmente abraçaram ambos de uma vez: como Parmênides, eles sustentaram que o mundo da nossa experiência é ilusório; na realidade não há "nada além" dos atómos. E como Heráclito, eles tornam o mundo, em última análise, ininteligível.

Mas os atomistas foram os mecanicistas originais, e seus sucessores modernos simplesmente repetem seus erros. Como eu escrevi em várias postagens antigas e argumentei extensivamente em "The Last Superstition" e "Aquinas", rejeitar as causas imanentes formais e finais é tornar a causalidade eficiente ininteligível também. Porque se nada de sua natureza "aponta além de si" para qualquer outra coisa, então causas e efeitos se tornam "soltos e separados"; qualquer efeito ou nenhum pode, em princípio, seguir de qualquer causa. Isso não só pavimenta o caminho para os paradoxos de Hume, mas mina a possibilidade de mostrar como o próprio fato da causalidade eficiente como tal — quer dizer, de potência sendo atualizada — pressupõe uma Causa Não-Causada sustentadora e puramente atual. A conexão metafisicamente necessária entre o mundo e Deus está quebrada; em princípio o mundo pode existir e operar tal como acontece à parte de Deus.

Ainda existem, é claro, questões sobre como os elementos da máquina mundial (quer pensemos nesses elementos como átomos Democriteanos ou em termos mais contemporâneos) vêm a formar estruturas mais ou menos complexas. Mas o peso das probabilidades vis-à-vis, dessa ou daquela estrutura poder ter acontecido por processos naturais conhecidos não pode nunca te levar a uma polegada mais perto do Deus do teísmo clássico, porque aquele Deus já foi descartado no momento em que foi concedido que a máquina pode pelo menos em princípio ter existido sem Ele.

Isso ainda permanece mesmo se o mecanicismo for adotado "só para fins de argumentação". Explicar o Deus do teísmo clássico numa base mecanicista mesmo a fim de argumentação é como dizer "Vamos conceder, só para fins de argumentação, que quem quer que tenha matado Nicole Brown Simpson e Ron Goldman não poderia ter sido um homem. Agora, deixe-lhe mostrar porque é provável, dado aquela suposição, que O. J. Simpson foi o assassino..." O procedimento é absurdo, porque a concessão inicial já eliminou a conclusão desejada da corrida.

Mas não se poderia argumentar que os próprios elementos devem ter vindo de Deus? Sim, mas não de uma maneira "mecânica". Porque se é afirmado desses elementos algo como uma composição de ato/potência, daí de fato se chega a Deus, mas (uma vez que tal composição acarreta a causalidade final) só porque se abandonou implicitamente o mecanicismo. Mas se alguém insiste em negar dos elementos qualquer tipo de causalidade final imanente, daí esse alguém estará assim implicitamente negando deles qualquer tipo de potência que precisa ser atualizada por algo fora deles. E nesse caso, os elementos não serão necessariamente sustentados no ser por Deus. Assim, independente ao que se apela a fim de explicá-los, nunca poderia ser o Deus do teísmo clássico, mas somente um substituto idólatra. Similarmente, o Deus do teísmo clássico é o Ser em Si, e nada poderia existir — quer dizer, ter ser — mesmo por um instante, mesmo em princípio, sem participar no Ser em Si (seja a "participação" entendida em termos neo-platônicos ou nos termos aristotelianizados da Quarta Via de Aquino). "Pesar as probabilidades" dos elementos de um universo mecânico poder ter eles mesmos uma causa, é assim, implicitamente, descartar o Deus do teísmo clássico como a causa que se defende, uma vez que se uma coisa participa do Ser em Si, isso não pode ser inteligivelmente tomado como uma questão de probabilidade, não mais do que tomar um teorema geométrico que segue de certos axiomas como uma questão de probabilidade.

Como Kant famosamente sustentou, o argumento "físico-teológico" ou o argumento do "design" para a existência de Deus, realmente não te leva a Deus, mas somente para um grande, porém finito, arquiteto cósmico — algo como o Ser Supremo, personagem de Ralph Richardson de "Time Bandits", como eu apontei numa postagem anterior. O mesmo é verdadeiro de qualquer argumento que prossiga, como Paley e seus sucessores fizeram, retratando Deus como um remendador que monta um universo mecânico. E o ponto, como eu não posso repetir muitas vezes, não é que esses argumentos não te levam de maneira alguma ao Deus do teísmo clássico, mas que eles te levam positivamente para longe do Deus do teísmo clássico. Você pode tirar um Deus da máquina, mas nunca "o" Deus.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Mário Ferreira dos Santos sobre a Teoria das Formas, de Platão

A MÍMESIS


Tenho uma caixa com um punhado de dez esferas de côres diferentes. Com elas posso formar um número imenso de combinações. Mas tôdas as vêzes que formo a combinação das côres verde-azul-encarnado, repito essa combinação, êsse arithmós. E se reunir três esferas das mesmas côres, mas outras, repetirei a mesma combinação.

Êsses números (arithmoi) não são mero nada. São possíveis que se actualizam existencialmente, cada vez que as coisas repetem a sua forma.

Pois bem, êste exemplo grosseiro permite-nos compreender as formas platônicas. Elas são únicas e sempre as mesmas, mas as coisas as copiam, as multiplicam, por imitação, por mímesis.

Mas êsses possíveis o são apenas para nós, para o plano cronotópico, pois são a verdadeira realidade, como a forma do triângulo é a verdadeira realidade dos triângulos, pois êste ou aquêle, que por acaso eu traço, serão passageiros, transeuntes, nunca, porém, a forma do triângulo (triangularidade) imperecível, eterna, perfeita, que êstes aqui, hic et nunc, apenas copiam, sem nunca alcançar a sua perfeição.

Os eide são ontologicamente extra-mentis. São realidades independentes de nossa mente, de nossas idéias no sentido psicológico; são ousíai kôristai. São subsistentes num modo de ser que não é cronotópico, pois se estivessem submetidas ao complexo tempo-espacial seriam destructíveis. Têm um modo de ser essencial e, por serem eternas, ultrapassam a todo modo de ser da temporalidade, que apenas tem um laço de participação com aquêles eide (metéxis)...

São as formas que sustentam e dão subsistência às coisas (parousia), pois elas dão unidade às aparências; arithmoi, que dão coerência aos entes cronotópicos; são, por isso, superiores, são paradeigmata (paradigmas).

Se são elas subsistentes de per si, ou no Ser Supremo, ou se, por sua vez, são da essência do ser, são temas dos quais não podemos tratar já, pois exigem outras análises.

[...]

Mas o que nos interessa para a gnoseologia é compreender como, para Platão, nosso espírito (nous) capta os esquemas dêsses arithmoi, dêsses eide.

Mas onde os capta? Como poderíamos conhecer um objecto se não o possuímos já de alguma maneira? Como se poderia dar a assimilatio do conhecimento sem o semelhante? Como posso conhecer sem que haja em mim algo que se assemelhe ao objecto?

É necessário alguma presença em mim do objecto. Que êle se imprima em mim através dos sentidos, compreende-se, mas como poderia imprimir-se em mim, sem que, de minha parte, se dê, emergentemente, uma aptidão para receber esta impressão?

Essa nossa capacidade de receber os objetos pelos sentidos não é tudo no conhecimento, pois sei que conheço e realizo, ao conhecer, uma actividade. Há algo latente em mim que é despertado.


AS FORMAS


Ao tratarmos de tal tema, assim escrevemos em “Filosofia da Crise”:

“A própria efectivação da forma, neste ou naquele ser, demonstra que ela era alguma coisa, e não o puro nada, antes do seu surgimento, nesta ou naquela coisa, pois, do contrário, não teria surgido no pleno exercício desta ou daquela actualidade. Por um vício natural do espírito humano, cujo esquema tem uma base muito mais profunda na nossa experiência vital, tendemos naturalmente a substancializar as coisas, para dar-lhes uma firmeza que as sustente. É natural que, num pensamento filosòficamente incipiente, procurassem alguns dar às formas uma substancialidade qualquer, mesmo de grau intensistamente, considerando-as, assim, como algo com uma estructura ôntica limitada. Daí a necessidade de colocá-las em um lugar, o que já revela debilidade filosófica.

Jamais o pensamento platônico se pode confundir com êsse pensamento vulgar. Considerar, como tal, a concepção de Platão, é um modo de caricaturizar a sua filosofia.

As formas não são para êle tòpicamente ubiquadas em qualquer lugar. Nem tampouco têm elas qualquer estructura sensível, isto é, captável pela intuição sensível. Eis por que não pertencem elas ao mundo da aparência, ao mundo do fenômeno, que é precisamente o que é captado pela intuição sensível, pelos sentidos. Se as formas têm uma consistência, não têm elas uma subsistência, com perseidade (de per se), isto é, actualizadas fora de suas causas, como é próprio de todo existente.

Aquêles que pitagorizam Platão, como é comum dizer-se, na verdade intrepretam genuinamente o pensamento do grande filósofo grego, pois as formas, não tendo uma existência de per si, pertencem, no entanto, ao mundo verdade, que é o mundo divino, do Ser Supremo, no qual elas subsistem. Todos os sêres, que formam uma unidade de qualquer espécie, quer de mera agregação, quer por accidente, quer substancialmente, têm uma forma, pela qual são o que são, e não outra coisa.

Esta forma, que é intrínseca aos sêres, é a sua lei de proporcionalidade intrínseca que lhes dá a especificidade. Quando Tomás de Aquino diz que a forma, enquanto ela mesma não é pròpriamente um ente, mas sim através dela é que alguma coisa é o que é, quer dizer que a forma é produzida, não como uma forma de per si subsistente, mas por ter tal forma é que a coisa é pròpriamente produzida. Neste caso, o sujeito da forma achava-se num estado potencial para receber, graças à ação da causa eficiente, esta ou aquela forma de uma espécie determinada, que, na língua latina, corresponde ao eidos aristotélico, mas na coisa.


A FORMA COMO PROPORCIONALIDADE INTRÍNSECA


Analisando êste pensamento, podemos dizer o seguinte: esta coisa é desta espécie porque tem tal forma desta espécie. Portanto, a forma é o pelo qual esta matéria é isto e não aquilo. Considerada a matéria, enquanto tal, ela seria indeterminada quanto à forma adquirida, e esta matéria tornou-se a matéria de, pela funcionalidade da forma. Para grosseiramente exemplificar, poderíamos dizer que um monte de barro, enquanto barro, não é ainda um vaso, senão quando recebe a forma do vaso, graças à causa eficiente que o modela. E, nesse momento, o barro passou a ser um vaso, pela forma que recebeu. A forma não é pròpriamente um o que (quod), que se agregou ao barro.

Apenas êste, como matéria, foi modelado, recebendo uma proporcionalidade intrínseca, assumido, assim, pela forma de um vaso, sem que pròpriamente tivesse êle aumentado ou diminuído quanto à sua matéria, mas apenas recebeu delimitações, determinações, pelas quais deixou de ser apenas um mero monte de barro para ser um vaso-de-barro.

Neste de-barro, temos o que Aristóteles chamava a causa material; na forma que recebe de vaso, a causa formal, e na acção do homem que o modelou, a causa eficiente. A forma, portanto, não tem uma substancialidade quando tomada isoladamente pelo nosso espírito que a abstraiu, segundo o ponto de vista aristotélico, como também segundo o tomista, da coisa, na qual ela estava informada. Conseqüentemente, a expressão de Tomás de Aquino de que é “através dela” que alguma coisa é, fica, nesta posição filosófica, perfeitamente esclarecida.

Podemos examinar o pensamento platônico, permanecendo ainda neste grosseiro exemplo, que, no entanto, permite clarear os horizontes que delimitam as duas doutrinas. Antes de haver surgido, feito pela mão humana, o primeiro vaso de barro, a forma vaso não era um mero nada, porque se o fôsse nunca poderia ter-se tornado existente no barro¹. [¹ Nunca é demais salientar que não se deve confundir a forma com a figura. No exemplo, sendo o vaso um ente da cultura, sua forma pode confundir-se com a figura, que é uma determinação qualitativa da quantidade. Mas um ser da natureza tem uma forma, por isso, o exemplo é grosseiro, mas serve para esclarecer.]

Mas a forma, tomada em si, não tem materialidade, portanto não é captável pelos nossos sentidos, não é um fenômeno que surja aos mesmos.

Neste ponto, tanto uns como outros estão plenamente de acôrdo. Mas o que caracteriza o pensamento platônico está nesta distinção, que é capital: a forma, se não é do mundo da aparência, é, pelo menos, do mundo da inteligência, pois pode ser captada intelectivamente, permitindo que, pela abstracção, realizada pelo nosso intelecto, possa ser tomada à parte. Neste ponto, ambos estariam de acôrdo. Surge, agora, o momento em que ambas doutrinas se separam: é que antes dessa informação da matéria, isto é, antes do barro ter recebido a forma do vaso, esta forma, se não pertence ao mundo da aparência, não pode, por sua vez, ser reduzida a um puro nada, pois, do contrário, essa certa quantidade de barro e a forma de vaso ou outra qualquer, seriam idênticas, o que repugnaria ao nosso espírito.

— Considerando assim, a forma não pode ser classificada como um puro nada, mas, sim, como alguma coisa, portanto como uma entidade, diversa da matéria, uma entidade formal no sentido do eidos de Platão, isto é, como um ser de outra ordem, que não a da materialidade; em suma, um ser imaterial.

Se o barro pode receber a forma de um vaso, fundando-nos na nossa classificação dos factôres emergentes e predisponentes, temos que reconhecer que o barro tinha a possibilidade passiva de receber essa forma. E se levássemos mais longìnquamente o nosso pensamento, poderíamos dizer que o que constitui o barro, a matéria do qual o barro vem, já continha em si, na sua emergência, a potência passiva de, por sua vez, receber a forma do barro. E como nessa peregrinação não poderíamos ir até o infinito, e encontraríamos o ser, temos de admitir que, no ser, há a aptidão para apresentar-se com tôdas as formas que já surgiram, que surgem, e que acaso venham a surgir. E essas formas não vêm de modo algum do nada, por que já estão contidas na aptidão do ser. O que as temporaliza são os momentos em que elas informam a matéria, mas, enquanto formas, elas são coeternas com o ser, e subsistem na coeternalidade do ser.

E como não têm elas a menor materialidade, não têm também uma ubiquação no espaço nem no tempo, e, dêste modo, não se pode pedir um lugar (pois êsse conceito implica espaço), onde estejam as formas, mas sim subsistem elas no mundo-verdade, que é o mundo divino do ser. Em linhas singelas, é êsse o genuíno pensamento platônico. Mas tal pensamento é decorrente do verdadeiro pensamento pitagórico. É o que vamos mostrar



----
O Um e o Múltiplo em Platão, pág. 51-53, 55-58.

Edward Feser | Conjurando a Teleologia

Na Philosopher's Magazine online, Massimo Pigliucci discute teleologia e teleonomia. Sua posição tem a virtude de ser simples e clara. Infelizmente, também tem os vícios de ser simplista e errada. Suas observações podem ser resumidas bem brevemente. Explicar o que há de errado com elas toma um pouco mais de tempo.

Teleologia, como Pigliucci diz, é propósito real, enquanto teleonomia é a mera aparência de propósito. A primeira, ele diz, sempre envolve a ação divina ou humana. As ciências podem, na visão de Pigliucci, ser distinguidas por suas relações com a teleologia e a teleonomia. "Física, química, astronomia e geologia", ele diz, "não são nem teleonômicas nem teleológicas".  No outro extremo, com a psicologia, a sociologia e a economia, é "obrigatório" que entendamos os fenômenos estudados em termos teleológicos. No meio fica a biologia, que ele diz que não é teleológica, mas teleonômica. Por que a teleonomia é "indispensável" à biologia? Porque, diz Pigliucci, "a seleção natural... realmente imita objetivos e propósitos" enquanto os fenômenos estudados pela física, química, etc., não imitam. E o que conta como diferença entre meros fenômenos teleonômicos e os verdadeiramente teleológicos? Na visão de Pigliucci, é a consciência, a ciência que "ainda espera por seu Darwin."

Pigliucci é um sujeito esperto e interessante, mas como vimos antes (aqui e aqui), como muitos outros filósofos contemporâneos ele parece frequentemente incapaz ou relutante em pensar fora da caixa do que todo mundo "sabe". Nesse caso, como a maior parte das pessoas que comentam sobre o assunto atualmente (sejam naturalistas, teóricos do Design Inteligente, ou quem quer que seja), ele negligencia várias distinções cruciais onde a teleologia está em causa — distinções que eu esmiucei no meu artigo "Teleology: A Shopper's Guide" (com novas e mais recentes discussões relevantes nas págs. 88-105 do Scholastic Metaphysics). Embora essas sejam distinções conhecidas naturalmente por nós, Tomistas, elas também são (como eu discuto nos escritos referidos e discuti em muitos outros lugares também) distinções algumas das quais você vai encontrar recapituladas por alguns não-Tomistas contemporâneos e até filósofos naturalistas.

Eu não vou repetir aqui tudo o que eu disse nesses escritos anteriores. Basta notar que existem pelo menos cinco abordagens que poderiam ser tomadas na questão de se a teleologia é (ou não é) real, e pelos menos cinco níveis na natureza na qual se poderia (ou não) identificar um tipo distinto de teleologia.

Como eu apontei antes, o primeiro conjunto de distinções corresponde grosseiramente aos cinco tipos de posição que alguém poderia tomar no problema dos universais: nominalismo, conceptualismo, e os três tipos de realismo (Platônico, Aristotélico, e Escolástico). O eliminativismo teleológico (grosseiramente paralelo ao nominalismo) sustenta que não há nenhuma teleologia no mundo natural. O reducionismo teleológico sustenta que há teleologia no mundo natural, mas que ela é inteiramente redutível a fenômenos não-teleológicos. O realismo teleológico platônico sustenta que a teleologia é real e irredutível, mas que ela não existe em fenômenos naturais, não-mentais, de nenhuma maneira intrínseca. Ao contrário, ela existe somente em relação a alguma mente (digamos, humana ou divina) que confere teleologia a fenômenos diferentes e sem propósito. O realismo teleológico aristotélico sustenta que a teleologia é real e irredutível e que ela existe em fenômenos naturais, não-mentais, de uma maneira intrínseca, sem precisar ser derivada de qualquer mente. O realismo teleológico escolástico é algo como uma meio-termo entre o realismo teleológico Platônico e Aristotélico. Sustenta que a teleologia é real e irredutível, e que ela tem um fundamento próximo na natureza intrínseca das coisas (como sustenta a visão Aristotélica), mas que ela também tem sua fonte última no intelecto divino (como sustenta a visão Platônica). O realismo teleológico platônico é a visão refletida em argumentos como os do Design de Paley e a teoria do Design Inteligente. O realismo teleológico escolástico é a visão que se encontra na Quinta Via de Aquino. (Veja meu artigo "Between Aristotle and William Paley: Aquinas's Fifth Way." Tanto este artigo quanto "Teleology: A Shopper's Guide" estão reimpressos em "Neo-Scholastic Essays". A distinção entre o realismo teleológico Platônico e o Aristotélico foi enfatizada na filosofia analítica recente por escritores como Christopher Shields e Andre Ariew.)

O segundo conjunto de distinções entre níveis na natureza nos quais a teleologia pode ou não existir, é o seguinte. Primeiro, a teleologia deve existir (de fato, como todos concordam, exceto materialistas eliminativistas, ela existe) no nível do pensamento e ação humana, onde os fins em direção aos quais o pensamento e a ação são direcionados são alcançados conceitualmente. Segundo, a teleologia existe em animais não-humanos de uma maneira que não envolve conceptualização, mas é ainda consciente. Terceiro, a teleologia existe em formas de vida meramente vegetais (no sentido técnico, Aristotélico, de "vegetativo") de uma maneira que é completamente inconsciente, mas ainda envolve processos que são direcionados ao florescimento do organismo completo. (Escolásticos chamam isso de "causação imanente", em oposição à "causação transeunte" na qual coisas não-vivas estão confinadas.) Quarto, pode-se afirmar que a teleologia existe em fenômenos inorgânicos de uma maneira que não envolve o florescimento de uma substância completa (como nas coisas vivas) mas ainda envolve processos causais complexos. David Oderberg  propõe o ciclo das rochas e o ciclo da água como exemplos. Quinto, a teleologia pode existir no nível mais simples na forma de um mero "direcionamento" de uma causa eficiente ao seu efeito característico ou gama de efeitos. O filósofo contemporâneo Paul Hoffman chamou este último tipo de "a noção central" da teleologia, e é essencialmente o que metafísicos contemporâneos como John Heil, George Molnar, e U.T. Place têm em mente quando eles atribuem "intencionalidade física" ou "intencionalidade natural" a poderes causais.

Agora, o primeiro erro que Pigliucci comete é supor como questão de fato que a teleologia, se é real, deve "ou ser o resultado de uma causa sobrenatural ('deus') ou, mais obviamente, da atividade humana". Isso assume essencialmente que as únicas opções são ou o eliminativismo teleológico ou o realismo teleológico Platônico. No entanto, certamente Pigliucci está familiarizado com versões do reducionismo teleológico (por exemplo, tentativas na filosofia da biologia de analisar a noção de função biológica em termos "naturalistas"), o que torna estranho que ele nem mesmo mencione elas de passagem. Talvez ele suponha (certamente, na minha visão) que tal reducionismo inevitalmente colapsa em alguma outra visão sobre teleologia. Mas Pigliucci parece completamente ignorante de que há tal coisa como a posição teleológica realista de Aristóteles — o que também é meio estranho, uma vez que o "Mind and Cosmos" de Thomas Nagel trouxe alguma atenção para isso recentemente (nem é Nagel o único naturalista a tomar tal visão). Naturalmente, alguém ignorante da posição teleológica realista de Aristóteles não estaria também familiarizado com a posição teleológica realista Escolástica (que só pode realmente ser entendida em constraste com as posições Aristotélica e Platônica). Talvez Pigliucci diria que todas essas visões acabem batendo com a posição Platônica. Mas justificar tal afirmação requereria argumento. Pigliucci não somente não dá nenhum argumento, ele não demonstra ter consciência de que há ainda uma disputa aqui.

O segundo erro de Pigliucci está em assimilar toda teleologia ao tipo exibido (ou aparentemente exibido) ou na ação humana ou em fenômenos biológicos. Essa é uma assimilação bem comum, mas está errada, e manifesta a tendência de Pigliucci (a qual vimos antes) de tomar o conhecimento convencional metafísico por garantido. De novo, teleologia de um tipo que é muito mais rudimentar do que o tipo que se encontra nos fenômenos biológicos e especificamente humanos pode sem dúvida ser encontrada em fenômenos cíclicos inorgânicos (como nos exemplos de Oderberg) ou em relações causais básicas (como nos fenômenos que escritores como Hoffman, Heil, Molnar, Place, e outros têm em mente). E nesse caso, mesmo que se negue que a "física, química, astronomia e geologia" estão preocupadas com fenômenos teleológicos verdadeiros, eles ainda seriam fenômenos teleonômicos — o que mina o modo proposto por Pigliucci de classificação das ciências, e também mina sua alegação de que é a seleção natural que conta para a teleonomia (uma vez que a seleção natural não existe no nível dos fenômenos inorgânicos em questão).

Pigliucci diz: "Não faz sentido perguntar qual é o propósito ou objetivo de um elétron, uma molécula, um planeta ou uma montanha". Mas a observação é ou direcionada a um espantalho ou raciocina em círculo. Se por "o propósito do elétron etc." Pigliucci tem em mente algo como os tipos de propósito que um coração ou um globo ocular tem (que somente podem ser entendidos por referência ao florescimento do organismo do qual esses órgãos são partes), ou o tipo que um artefato tem (que somente pode ser entendido por referência aos propósitos humanos para os quais o artefato foi feito), então ele está, é claro, correto de que elétrons, moléculas, planetas e montanhas carecem de tais propósitos. Mas nem toda teleologia precisa, em primeiro lugar, envolver os tipos de propósito que nós vemos em órgãos corporais e artefatos, e aqueles que atribuem teleologia a fenômenos inorgânicos não estão atribuindo a esses fenômenos esses tipos específicos de teleologia. O que eles têm em mente, em vez disso, é o mero direcionamento a um fim.

Agora, qualquer coisa com poderes causais irredutíveis sem dúvida tem esse tipo de mero direcionamento — o que Hoffman chama de "a noção central" da teleologia — na medida em que tem um tipo típico de efeito ou gama de efeitos. Teóricos contemporâneos de poderes "neo-essencialistas" dispostos a apoiar algo como "intencionalidade física" atribuiriam esse tipo de teleologia a partículas físicas. Planetas e montanhas (para citar outros exemplos de Pigliucci) são mais complicados, uma vez que pode ser argumentado que seus poderes causais são redutíveis aos de suas partes. Se é assim, então eles teriam o que os Escolásticos chamariam de meras "formas acidentais" ao invés de "formas substanciais", e assim não seriam verdadeiras substâncias, e assim não seriam candidatos aos tipos de coisas que têm teleologia irredutível em primeiro lugar. Eu não pretendo entrar em todos esses assuntos aqui. Basta dizer que Pigliucci não está só ignorando as distinções entre os tipos de teleologia, mas também dando exemplos de tipos bem diferentes que requereriam tratamento cuidadoso caso por caso na aplicação de noções metafísicas relevantes. (Veja Scholastic Metaphysics para a exposição e defesa de todas as noções relevantes.)

É também surpreendente que um filósofo da ciência como Pigliucci deve negligenciar um famoso exemplo de suposta teleologia em física, isto é, princípios de mínima ação. (Veja o periódico de Hawthorne e Nolan "What Would Teleological Causation Be?" para uma breve e recente discussão por filósofos.) É claro, se tais princípios devem realmente ser considerados como teleológicos é uma questão de controvérsia, mas isso é irrelevante para o ponto presente. O que é relevante é, primeiro, que se eles são teleológicos, eles não teriam o tipo de teleologia que órgãos corporais e artefatos têm. Logo, eles seriam bons exemplos do tipo mais rudimentar, sub-orgânico de suposta teleologia que Pigliucci negligencia completamente. Segundo, o próprio fato de que princípios de mínima ação pelo menos parecem teleológicos a muitas pessoas, é uma outra boa ilustração de como mesmo a física é sem dúvidas teleonômica mesmo se fosse concedido a Pigliucci que não é teleológica. Mais uma vez, isso minaria a tentativa de Pigliucci de explicar a teleonomia em termos de seleção natural.

Um outro problema com as observações de Pigliucci é que ele supõe que uma referência à seleção natural é suficiente para mostrar que a teleologia foi banida da biologia. Mas esse não é o caso. Como vários pensadores sem teorias de Design Inteligente ou outro "ressentimento" teológico apontaram (por ex.: Marjorie Grene, Andre Ariew, J. Scott Turner), a seleção natural por si mesma somente lança dúvidas sobre a teleologia onde questões de adaptação estão envolvidas. Se algum tipo de teleologia é necessária para dar sentido a processos de desenvolvimento num organismo é outra questão. (Tenha em mente que se tal teleologia requer referência a algum tipo de designer é, contrário ao que Pigliucci parece supor, ainda uma outra questão — e algo que demandaria a resolução da disputa entre o realismo teleológico Platônico, Aristotélico, Escolástico, e o reducionismo teleológico.)

Finalmente, Pigliucci negligencia alguns problemas óbvios com suas observações sobre a consciência. Como ele mesmo admite, aparentemente, fenômenos que envolvem consciência são irredutivelmente teleológicos e não meramente teleonômicos. Até aí tudo bem; eu penso que isso é certamente verdadeiro. Mas nesse caso é bem tolo pretender (como Pigliucci pretende) que explicar a consciência requer meramente que a ciência cognitiva encontre seu próprio Darwin. A maneira que Darwin explica a adaptação é precisamente argumentando que ela não é realmente teleológica de forma alguma, mas meramente teleonômica. Naturalmente, então, se a consciência é irredutivelmente teleológica, ela não vai nem mesmo em princípio ser suscetível a esse tipo de reducionismo ou explicação eliminativista.

É claro, Pigliucci pode responder que ele não quis insinuar que a consciência poderia ser explicada exatamente do tipo de forma empregada por Darwin, mas que ela só requereria um cientista da estatura de Darwin para explicá-la. Justo, mas mesmo nesta interpretação sua observação é ainda é frívola. Darwin, e os outros grandes nomes da ciência moderna, são considerados grandes muito porque eles são pensados como aqueles que encontraram maneiras de eliminar a teleologia dos fenômenos que eles trataram. Em particular, eles trataram a teleologia como mera projeção da mente, em vez de um real aspecto da natureza. Obviamente, você não pode aplicar essa abordagem a processos teleológicos conscientes sem implicitamente negar a existência da coisa que você deveria estar explicando, ao invés de realmente explicá-la. (E ainda mais, tomar uma posição incoerente, uma vez que a teorização científica, o peso das evidências, etc., são eles mesmos todos processos teleológicos conscientes.)

Então, um "Darwin" da ciência da consciência teria que ser tão diferente de Darwin, Newton & Cia. quanto eles foram diferentes de Aristóteles. Em particular, ele teria que reverter a tendência anti-teleológica da teorização científica moderna. Ou, de qualquer maneira, ele teria que fazê-lo por tudo o que Pigliucci disse, ou tudo o que ele poderia plausivelmente dizer dado o que ele está disposto a conceder em face da centralidade da teleologia genuína (não somente teleonomia) para o entendimento do fenômeno humano.

Logo, escrever vários parágrafos sobre o banimento científico da teleologia de todo lugar na natureza e ao mesmo tempo insistir que a teleologia é real no caso dos seres humanos, e depois casualmente insinuar que a história do banimento dá esperança de que algum dia uma explicação científica da teleologia da consciência humana será também possível... fazer isso é como um truque de mágica, um pouco de truque de mãos. Para apelar para uma analogia que eu usei muitas vezes antes, é como alguém que se livrou de toda a sujeira de todos os quartos da casa varrendo ela para debaixo do tapete, e quando perguntado como ele vai se livrar agora da sujeira debaixo do tapete, ele responde: "Porque eu vou me livrar dela da mesma maneira que eu me livrei da sujeira em todos os quartos, é claro! Esse método funcionou em todos aqueles outros casos — por que não funcionaria no caso da sujeira debaixo do tapete?" Isso só soa plausível se você não pensar muito cuidadosamente sobre o que acabou de ser dito. O minuto em que você pensa nisso, você vê que de fato é absurdo. Naturalmente, o sucesso passado do método de varrer-para-debaixo-do-tapete não dá a razão que seja para pensar que esse método oferece esperança de se livrar da sujeira debaixo do próprio tapete. E pela mesma razão, o sucesso passado do método de tratar-a-teleologia-como-mera-projeção-da-consciência não dá a razão que seja para pensar que pessoas usando essencialmente o mesmo método serão bem sucedidas em explicar a teleologia da própria consciência.

(Para uma discussão mais detalhada dessas e de outras questões relacionadas, veja minha série de postagens sobre "Mind and Cosmos" de Nagel e sobre "The Atheist's Guide to Reality" de Alex Rosenberg.)


----

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

"Significará, por acaso, que todos os que estão reunidos nesta sala possuem, a respeito das respectivas condições de vida, conhecimento de nível superior ao que um hindu ou um hotentote poderiam alcançar acerca de suas próprias condições de vida? É pouco provável. Aquele, dentre nós, que entra num trem não tem noção alguma do mecanismo que permite ao veículo pôr-se em marcha — exceto se for um físico de profissão. Aliás, não temos necessidade de conhecer aquele mecanismo. Basta-nos poder 'contar' com o trem e orientar, conseqüentemente, nosso comportamento; mas não sabemos como se constrói aquela máquina que tem condições de deslizar. O selvagem, ao contrário, conhece, de maneira incomparavelmente melhor, os instrumentos de que se utiliza. Eu seria capaz de garantir que todos ou quase todos os meus colegas economistas, acaso presentes nesta sala, dariam respostas diferentes à pergunta: como explicar que, utilizando a mesma soma de dinheiro, ora se possa adquirir grande soma de coisas e ora uma quantidade mínima? O selvagem, contudo, sabe perfeitamente como agir para obter o alimento quotidiano e conhece os meios capazes de favorecê-lo em seu propósito. A intelectualização e a racionalização crescentes não equivalem, portanto, a um conhecimento geral crescente acerca das condições em que vivemos. Significam, antes, que sabemos ou acreditamos que, a qualquer instante, poderíamos, bastando que o quiséssemos, provar que não existe, em princípio, nenhum poder misterioso e imprevisível que interfira com o curso de nossa vida; em uma palavra, que podemos dominar tudo, por meio da previsão. Equivale isso a despojar de magia o mundo. Para nós não mais se trata, como para o selvagem que acredita na existência daqueles poderes, de apelar a meios mágicos para dominar os espíritos ou exorcizá-los, mas de recorrer à técnica e à previsão. Tal é a significação essencial da intelectualização."


---

Max Weber - A Ciência como Vocação